Fronteiras

Uma imagem que se assemelha a uma pintura, um vilarejo encravado na montanha, um caminho sinuoso entre eucaliptos, cercado por plantações de oliveiras.

Se fosse apenas para enumerar vantagens, como aqueles cadernos de checklists, de metas, de sonhos, teríamos apenas que parar no mirante indicado pela National Geographic, tirar fotos e voltar para casa.

Mas desde que comecei a registrar minhas explorações neste blog em 2016, a busca nunca foi pela quantidade intensa e incansável, mas sim, como em tudo na minha vida, por histórias, afetos e profundidade.

Descemos até a igreja redonda do vilarejo e caminhamos lentamente pelas ruas estreitas. Olhares curiosos dos moradores locais, facilmente identificando pelo idioma dessa família tagarela que não somos espanhóis.

E nós, observadores, percebendo também que a maioria que estava agrupada nas esquinas das ruas não era da mesma nacionalidade dos moradores locais.

O pequeno vilarejo rural, com uma extensa área de plantação de azeitonas, não possui população jovem o suficiente para realizar a colheita.

As mãos que hoje sustentam as colheitas são justamente do povo que, historicamente, no dia 2 de janeiro, foi expulso dessas terras pelos reis católicos.

Ironia do destino? Não tenho certeza e nem ousaria julgar. Apenas constato.

Quando estabelecemos fronteiras, pódios, metas e sonhos apenas para nos colocar acima dos outros, o destino nos surpreende, em algum momento, mostrando-nos que somos interdependentes.

Em um momento, você está deste lado, em outro está do outro lado.

Qual mão alimenta quem?

Se a visão for sistêmica, criamos comunidades. Se for competitiva, criamos guerras.

Se o ego for inflado, criamos sensações de superioridade. Se houver consciência, criamos autenticidade e habilidade de agregar.

Descemos um pouco mais para conhecer o vilarejo, voltamos e mergulhamos na deliciosa cafeteria perto da praça da igreja.

Conversas, moradores locais, café com leite ou apenas um espresso, Colacao ou um chá, lanche das 17h: um hábito espanhol tão bem apreciado por mim, que, assim como eles, amo cafeterias.

Somos tão diferentes e, ainda assim, tão parte uns dos outros.

Quando nos ensinaram que a criação de fronteiras define o primeiro ou segundo mundo, ou que chegar primeiro é mérito?

Continuo aqui, calmamente, sentindo, sendo e amando o que me faz sentir. Encontros e compartilhamentos.

Mais do que simplesmente registrar a imagem na moldura dos olhos da National Geographic.

Emoldurar com os olhos da alma o ser humano que vejo diante de mim.

Terminou . E agora, o que fazer?

Você já parou para sentir o peso dos pensamentos que ocupam nossa mente, nos atormentando com o que não tivemos? Com a falta que sentimos? É como se a mente ruminante nos torturasse com o que não foi, com o que as pessoas deixaram de nos dar, com as frustrações e metas não alcançadas. Uma voz sutil de massacre sobre aquilo que não conseguimos oferecer a nós mesmos.

E como se não bastasse o peso, cedemos a essa cultura da comparação.

A armadilha desse diálogo interno da comparação é que, assim como julga e critica os outros, também nos olha com dureza.

Comparar-se para se sentir superior é cruel, um prazer obtido à custa do que o outro não tem. Mas e quando quem não tem, segundo seus próprios olhos, é você mesmo?

Caiu na armadilha!

Um dos aprendizados mais recentes que eu tive no meu próprio processo terapêutico foi uma  pergunta-chave para resgatar meu diálogo interno dessa ruminação: “E agora?”.

“Eu nunca consegui me dedicar a mim.” Que bom que você chegou a essa conclusão mas e agora, o que fará sobre isso?

“Ele nunca demonstrou afeto, desde que nos conhecemos.” Mas e agora, será que ele ainda age assim? Se sim, o que você fará em relação a isso? Se hoje ele demonstra mais afeto, como você está aproveitando esse momento? Ou está apenas lamentando o que não foi como você esperava, deixando de usufruir do afeto presente?

“Já faz tempo que minhas amizades não me valorizam” Mas e agora, o que você pode fazer para mudar isso?

Por quanto tempo nos apegamos ao que não foi, ao que não nos deram, ao que não fizemos? Alimentar esses diálogos internos é como se agarrar a uma cortina de fumaça do passado, algo sobre o qual não temos mais controle…

Fizemos o que pudemos, com a sabedoria e as circunstâncias que tínhamos. Precisamos aprender a aceitar, de forma sincera e honesta, o amor que não continuou, os afetos que perdemos, as perdas decorrentes das escolhas que fizemos, o que somos e não somos. O que esperamos e não recebemos. O que não foi e não será.

Não podemos ter tudo, nem ser tudo. Somos o que conseguimos ser. Mas diante das possibilidades  que o próximo ano nos reserva, você pode se perguntar: o que posso fazer, com tudo o que sei, sinto e sou até agora?

Aprendi que não tenho controle sobre as ações dos outros e sobre muitas circunstâncias em que me encontro. Mas o que posso fazer a partir de agora para lidar de forma afetiva e me levar em direção ao que realmente mereço e quero para mim?

O que estou fazendo neste momento está contribuindo para o futuro afetivo que desejo?

Não se iluda, o próximo ano será apenas a consequência de cada pequena escolha e decisão que fizer.

Cada decisão em relação à sua saúde mental, física, espiritual e aos seus relacionamentos.

Cada escolha sobre o que você aceita e o que não aceita mais agora. O que você quer e o que não quer. Cada sentimento e emoção que você alimenta agora, é o seu mensageiro. Escute-os.

E você pode usar tudo o que dói ou doeu como adubo para o seu crescimento. Ou pode apenas se acolher e se perdoar. Mas o que você vai plantar a partir disso agora?

“A cada passo que você dá, o mundo sai do lugar”. Mas é como você se sente que definirá a sua direção.

Para onde seus sentimentos e emoções estão te levando?

E o que você fará a respeito disso agora?

Quer você queira ou não, está construindo o seu futuro, agora.

Cuide da qualidade afetiva disso, principalmente, do seu espaço interno.

O ano terminou. E agora, o que fazer?

Saboreie a vida agora. A mordida logo acaba.

Que o ano de 2024 seja repleto de intensidade, simplicidade e afeto.

Agradeço aos meus pacientes, que cruzam meu caminho e me ensinam cada dia a ser um ser humano melhor, agora.

Gratidão à minha psicóloga, que me mostra que olhar para dentro de mim é o caminho mais importante, agora.

Beijos no coração.

Por Gizele Cordeiro

Amélia hoje é de verdade

Amélia é que era a mulher de verdade, como diz a música…🎵🎼

É surpreendente imaginar a Amélia da música me vendo passar oito horas seguidas limpando a casa, enfrentando esse trabalho árduo com determinação mesmo não sendo algo que eu goste. Fazendo o almoço e olhando para o banheiro com o seguinte pensamento: tudo bem sentir raiva, afinal, ninguém gosta de limpar o vaso sanitário que todos sujam.

Durante essas oito horas, a Amélia ficaria rindo do refrão da música, me vendo cuidar das tarefas domésticas e ao mesmo tempo realizando meu trabalho autônomo, que é ensinar outras mulheres a se incluírem em sua rotina de autocuidado. A Amélia moderna não pode descuidar do celular e do trabalho.

Por ironia do destino, a própria Amélia não conseguiu fazer seus exercícios para tratar sua diástase, e dentre tudo isso, ainda aciona o botão da autocobrança.

Durante essas doze horas, o pai da criança desceu com ela por uma hora, pois a mãe já estava quase surtando entre aspirar a casa, atender ao telefone e dar atenção ao bebê…

Durante essas oito horas, o pai trabalhou quatro horas fora, comeu um lanche no almoço, já que a esposa não conseguiu terminar a sopa a tempo. Ela ficou chateada, pois queria que seu marido experimentasse a sopa, mas como uma Amélia moderna, ela deveria agradecer por não ouvir gritos e caras feias porque a sopa não estava pronta. Ela deveria se ajoelhar e agradecer a Deus por ter um homem funcional ao seu lado…

O pai, também sobrecarregado com o papel de um dos provedores da casa, retorna ao trabalho para organizar o período da tarde, sai para passear com o menino por uma hora e volta para finalizar suas tarefas. No entanto, com um senso de empatia, ele ajuda um colega que precisa de apoio.

A mãe, quase às 8 da noite, sem rede de apoio e empatia, se vê desesperada de cansaço e comete um “delito”: pedir McDonald’s para ela e as crianças. Enquanto aguarda o tão esperado banho, que é um dos poucos momentos de descanso, a comida ainda levará algum tempo para chegar. A qualidade do jantar é a prova de que todos pagarão a conta em algum momento…

No entanto, apesar de tudo isso, a mãe reúne uma última força e coloca um filme emocionante para esse momento familiar de risadas e aprendizado, um dos poucos momentos do dia que acalma seu coração.

Ver as crianças sorrindo.

Embora em seu íntimo, a mãe desejasse estar sozinha, assistindo à sua série atual favorita, acompanhada por uma garrafa de vinho e uma deliciosa massa italiana.

E justo hoje, a Amélia moderna acordou pensando na música 🎵 Todo dia ela acorda sempre igual, me sacode as 6h da manhã, me sorri seu sorriso pontual… 🎼🎵

Mas não, ela é daquelas Amélias que acordam às 10h, apesar de se sentir culpada, compensando a noite mal dormida entre desligar a mente do trabalho e amamentar…

E assim, o moinho de uma jornada dupla e o fardo invisível do trabalho doméstico recomeçam.

Entre as brincadeiras masculinas de que a mulher é quem manda em casa e a solidão de uma carga que dita e limita a vida de uma mulher, ela sente que a única coisa que está sob seu controle é não abandonar o barco.

Embora o barco esteja rachado e a água comece a entrar e dançar com as bordas; as Amélias em uníssono perguntam:

“Meu filho que se há de fazer?”

Amélia hoje é de verdade.

Por Gizele Cordeiro

25/11 Em homenagem ao Dia Mundial da erradicação da violência contra a mulher.

Pequenas violências aprisionam e matam.

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.” Cecília Meireles

Legados

“Mãe, amei a nossa aventura juntos!”

É sobre isso. E só. E tudo.

Legado em experiências.

Sentidos. Do que nos faz sentir. Na força do afeto que nos move.

Quais legados afetados por experiências você têm deixado no coração daqueles que ama?

O moço disse que a gruta de Benagil – Algarve é a sétima gruta mais vista da Europa. Moço, sei disso não. Só sei que sua alegria e animação fez do nosso passeio de barco uma experiência inesquecível.

Memórias.

Colecionando daqui até a eternidade.

Com emoção ou sem emoção?

Essa foi a pergunta que chegou até os meus ouvidos com um sotaque português e logo me soou familiar.

O “capitão” do barco, como ele mesmo se referia, disse que após o encontro com muitos brasileiros naquela linda praia de Benagil, região do Algarve em Portugal, havia aprendido que era assim que perguntavam os guias na região do nordeste Brasileiro.

E que a maioria dos brasileiros que visitavam as grutas com ele, gritavam animadamente, com emoção.

O encontro através das palavras.

Essa é uma pergunta que podemos fazer todas as vezes que a vida nos pede pausa na rotina, quebrando a domesticação de uma segurança que nos aliena daquilo que sentimos.

A vida não pede todo tempo o extraordinário, há emoção na delicadeza, na rotina, mas a natureza vibrante dentro da gente também pede passagem.

Com emoção. Pedi animadamente.

Sorrisos de cumplicidade e alegria entre eu e meu filho, enquanto o capitão pisava no acelerador e a água das ondas caíam no barco.

Adrenalina, não sei se estimulada por tamanha beleza e a imensidão do mar ou o vento forte batendo no rosto.

Afetar-se de uma maneira que as batidas do nosso coração nos lembre que a vida é pulsar!

E para você? Vida. Com ou sem emoção?

Por Gizele Cordeiro

Re – laço-nar-se

Não é sobre conseguir ficar sozinhos, é sobre ser, estar, ficar, permanecer apesar de toda liberdade de se ir…
É sobre admitir que não sabemos amar, somos seres em construção e as relações são as possibilidades desse aprendizado.
Hora saboroso, hora doloroso com todas as nuances de cores e Sabores.
É sobre lealdade e compromisso.
É sobre a parceria desafiando a competitividade e a codepêndencia.
É sobre amizade e cuidado.
É sobre aprender a servir e permitir-se o cuidado.
É sobre o afeto superar “o dono da razão” que vive dentro da gente para que o outro possa respirar vida a autenticidade nessa relação.
Construir autonomia e transformações individuais nessa mutante relação com o outro. E ainda assim, permanecer.
Estamos aprendendo esse tal do amor.
Numa sede de entrega à reciprocidade tentando compreender os limites de cada um.
É sobre respeitar a falta e não exigir preenchimentos de lugares que se fortalecem com o vazio e a angústia.
É também sobre espaço, tempo e diálogo, que nos falta, nos distancia e machuca. Mas que se resgata num sorriso, numa música ou numa história, foto ou lembrança recontando o afeto, preenchendo a distância que se formou.
É sobre o café na cama que você me traz, todo santo dia, com ovos e cappuccino.
É sobre minha mensagem no waths que se faz presente até nos dias pagãos, quando o pior de mim é servido à mesa e abafado com seu silêncio de paciência.
É sobre minhas declarações de reconhecimento que te deixam sem jeito e seu cuidado diário que dá força pra nossa rotina.
Cozinhar, limpar, lavar e cuidar nessa comunidade que nos esforçamos por manter, diariamente de maneira justa apesar do cansaço.
Suportar um furacão não é para qualquer um.
Até hoje me pergunto como você consegue.
Como conseguimos?
Você nos vê velhinhos…
Eu nem sei se me vejo nesse futuro tão longínquo…
Só sei que a cada dia que eu digo sim, fico, permaneço e me entrego você nunca pensou em dizer não.
Tenho aprendido a te amar de tantas maneiras e hoje há mais espaço dentro de mim: maior, mais seguro e fortalecido de afetividade! ❤️
Te agradeço tanto.
Pela nossa história.
Filhos
E afetos.
Pelos infinitos momentos e trajetórias colecionados.
Nossa maior viagem, regada de intensidades imensuráveis é a nossa história.
Quer namorar comigo?
Só por hoje.

¿Attraversiamo? ❤️

Por Gizele Cordeiro, aprendiz eterna do amor.

Para Júlio Bernabé, companheiro dessa viagem chamada vida.

Os Sentidos de uma Brasileira na Espanha

Acordo pela manhã sentindo falta do meu café, aquele que eu acostumava tomar em alguns dias nas cafeterias do meu bairro. Foi uma das coisas que mais me identifiquei na cultura espanhola: o hábito de ‘desayunar’ nas cafeterias e saborear as ‘meriendas’ no final da tarde. Ali ficavam todos, numa linda mistura de momentos compartilhados: crianças, famílias, amigos e idosos empurrando seus andadores, alegres, sentados, regados a muita conversa.

Mas hoje eu estava só, na minha pequena comunidade chamada família, enfrentando este desafio que o Universo nos trouxe. No 15º dia da Quarentena, abro a porta do meu quarto que dá para uma pequena sacada e, diferente das vozes que ouvia das ruas, recebo o vento tocando o meu rosto em um dia fresco, ouço as pausas entre o silêncio e o canto dos pássaros que não ouvia a tempo devido ao ruído dos carros, respiro profundamente um ar puro e digo em voz alta:

– Hoje vou tomar meu café na sacada!

Meu filho, que me ouve, encara como brincadeira e sai arrumando o cenário como se fosse o garçom e, já sentados, observamos as ruas vazias. Meus pensamentos seguem voando enquanto desfruto do cheiro do meu cappuccino quando, repentinamente, minhas sensações são interrompidas e meus pensamentos me jogam, imersa, nas tensões das minhas responsabilidades. Sorrateiramente puxam os fios das coisas que eu tenho que fazer neste dia, então, paro um momento e me obrigo a freá-los quando me dou conta da palavra produzir. Lembro-me do livro ‘Vida líquida’, de Bauman, e reflito:

como é difícil não pensar em produzir quando, em nossa sociedade, “se eu não produzo, eu não existo”.

Recordei minha dinâmica na primeira semana da quarentena, a energia que chegava intensamente por ter aquele tempo tão esperado, apesar da minha rotina incluir trabalhar desde casa. Coloquei a faxina em dia, dos armários saquei aquelas roupas que nunca usei, mas que poderia ser útil para alguém, separei os livros que gostaria de ler, coloquei na agenda as coisas que gostaria de fazer e até arrisquei me comprometer em atividades físicas regularmente. Nossa… chegar nesse ponto me deu uma sensação de alívio; vou conseguir produzir nesses primeiros dias de quarentena e quem sabe começar aquele curso tão desejado.

Depois do sétimo dia, a realidade veio bater à minha porta; as ativações do setor de Emergência (Equipe de Resposta Imediata de Emergência Psicossocial), no qual sou voluntária como psicóloga na Cruz Vermelha espanhola, começaram a aparecer. Então coloquei minha programação de lado para pegar o telefone e ouvir os medos e receios das famílias que já tinham sido afetadas pelo coronavírus. Famílias que não podem acompanhar os internados, que têm notícias somente uma vez ao dia através da equipe do hospital e nenhum contato quando esse paciente sai da internação e vai para a UTI porque necessita de um respirador; famílias que também não podem sair para ir ao mercado ou levar o cachorro passear porque estão em quarentena, provavelmente também infectadas.

A cada intervenção que eu acompanhava ou ouvia através dos relatos dos outros voluntários da equipe de emergência, eu ia olhando para os meus medos, inseguranças e receios diante do cenário de um país com mais de 73 mil diagnósticos confirmados, mais de 5.900 mortes e em média 12 mil curados. Pacos, Pepes, Antonios, Marias, Almudenas e tantas outras pessoas que compunham aquele cenário lindo das cafeterias, com suas risadas, broncas e interações, atuando como avós, pais, tios, com suas crianças, famílias e amigos… esse cenário estava em risco. Não eram somente números; são histórias, como a minha e a sua. Nossos idosos estavam morrendo e alguns adultos já não chegariam a desfrutar de sua velhice.

Como na minha cidade a equipe de voluntários é grande e todos já estavam em dia com seus cursos preparatórios para essa emergência, a minha demanda não era e nem está sendo intensa. Está muito bem distribuída entre atender os afetados pela infecção, como também linhas disponíveis para uma escuta ativa destinada à população e profissionais sanitários. Não estou sobrecarregada e arriscaria dizer que meu tempo está sobrando, mas não para produzir mais, meu tempo agora foi ‘ressignificado’.

Reflito naquela conjuntura de pensamentos racionalizados que lançou Descartes resumidamente na frase “Penso, logo existo”, que comigo passou da racionalização, quando montei minha listinha de tarefas para os primeiros 15 dias da quarentena, para um significado mais intenso: “Sinto, logo existo”. Sem a pretensão de comparação, entre mim e o grande filósofo, essa reflexão sobre o sentir me permitiu olhar mais atentamente para o cenário do mundo. Enquanto profissional da saúde lembrei-me dos índices de depressão, transtornos mentais e suicídios no mundo. Enfermidades que podem estar relacionadas por um incrível distanciamento entre a desvalorização do sentir e da sua filha, a sensibilidade, por uma supervalorização da razão e mais ainda massacrada por uma demanda intensa de produtividade.

E eu, que sempre apostei como linha de trabalho psicoterapêutico o contato das emoções e sentimentos, estava me reconectando com a essência que me move no meu trabalho e dando um novo significado para esse caos: tempo de sentir. Mas não, não é sentir como fiz intensamente e individualmente quando sofri da ‘Síndrome de Ulisses’ nos dois primeiros anos, por ter me aventurado como emigrante em um novo país. É tempo de sentir o ‘Outro’!

Depois de racionalizar, planejar e organizar minha quarentena e da minha família, hoje me encontro no tempo de sentir… o ‘outro’, e olha que eu arrogantemente achava que vivia isso intensamente. Mas percebi que mergulhar intensamente na situação em que o caos nos coloca é enxergar que não há linha de chegada nem meritocracia que vá fazer alguém chegar vivo no topo dessa luta sem muita dor pelos milhares que ficaram para trás. E que aquela tristeza, que há tempo negávamos sentir, vai ficar por um tempo como nossa mestra para o exercício da nossa humanidade.

Que todo o mundo dói, literalmente. Dói de medo, de fome e de pavor.

Sentir o outro me faz refletir que se eu encher três carrinhos de supermercado com medo da escassez e comprar 15 potes de álcool gel e não sobrar álcool para o mocinho que vai carregar minhas compras, não adiantou nada. Estamos todos afetivamente, pelo amor ou pela dor, interligados. Que talvez pensar na dor do outro e senti-la desabrocha a minha capacidade e sensibilidade de distribuir álcool gel ou sabonete, ou alimento para aquela família do meu bairro que não tem como gastar com isso. Sem pena, porque a pena pode ser uma armadilha que guarda meu complexo de superioridade, e sem culpa, pois não sou vítima do caos, sou corresponsável atuante para ajudar a resolvê-lo sem me pautar em ideologias, mas em atitudes.

Quando nos sentimos responsáveis só há duas formas de se comportar emocionalmente de maneira saudável: decidindo e agindo. Toda decisão trará perdas – quem não quer perder nada é o imaturo e egocêntrico. A questão é que quando faço escolhas baseadas no sentir o ‘outro’, as minhas decisões abrangem um comprometimento social e uma maior humanidade. O meu comprometimento social pode não me permitir ficar em casa porque tenho que pagar minhas contas, ou porque faço parte dos trabalhadores dos setores de emergência. Mas e se eu unir forças com os outros que estejam ou não na mesma situação em que me encontro? Que desejam assumir a responsabilidade de cuidar da nossa comunidade? Com os recursos que temos? Será que não me sentiria fortalecida para exigir, do estado e dos líderes, soluções conjuntas que façam todos se sentirem mais seguros? E tudo bem se eu tiver que sair para a rua para trabalhar, porque sei que estou fazendo o meu melhor, e aqueles que ficam em casa também. Na conexão com o ‘outro’ posso cuidar de mim e dos meus com mais atenção e responsabilidade, sentindo o cuidado das vidas que amo e dos que são amados por alguém.

E quanto aos que não tem um ‘alguém’, quiçá possamos mostrar que existe uma comunidade unida também por ele, para que muitas histórias sobrevivam ao caos. Sim, temos como prioridade o trabalho, mas eu trabalho por quem? Para quê? Se esse ‘quê’ ou ‘quem’ deixar de existir, cai por terra o significado dos tempos que me dediquei ao trabalho. E esse foi um dos outros aprendizados que obtive com os idosos espanhóis.

Sim, eu sei, muita gente trabalha simplesmente para matar a fome, infelizmente, em nosso país. Essa constatação me faz recordar uma frase postada nas redes sociais nesses dias por um dos grandes violeiros do nosso lindo país, Paulo Freire: “É o Amor, e não a Vida, o contrário da Morte”. Frase de seu pai, Roberto Freire. E sinto que talvez um dos sentidos do caos ou dos tempos de sentir o outro é considerar o Amor como prática comunitária obrigatória e sentir realmente que toda a Vida vale Amor, independentemente do que ela produz.

Nesses devaneios, um dos meus ‘porquês’ ou ‘por quem’ tocou levemente meu braço perguntando:

– Mãe, posso levar sua xícara?

Então, eu olhei em seus pequenos olhos da cor de jabuticaba e o abracei demoradamente, sentindo-me privilegiada por ainda estar em sua história.

Gizele Cordeiro – Psicóloga por paixão e uma eterna colecionadora de sentidos.

Texto criado para o Jornal A Comarca da cidade de Matão – SP.

Foto texto Gi

 

 

 

Mulher Presente


Por Gizele Cordeiro

Sim, eu quero presentes!
Da vida, do Mundo, de quem está ao meu lado todos os dias, dos que partilham do meu trabalho, dos que me compreendem nos momentos em que eu não me faço presente.
O presente pode vir embrulhado como: apoio, reconhecimento, incentivo, tempo dedicado, afeto, entusiasmo, momentos de alegria, superação, paz, tranquilidade, sorrisos e afagos.
Presença daquele olhar que diz: “eu te entendo”, “estamos na mesma”, “não é fácil” mas saber que estamos alí, na luta para nos fazermos presentes, vistas, vivas, lembradas, atuantes, desbravadoras dos espaços que nos convém, acima de tudo.
Quero o presente da presença mais intensamente humana.
Presenças que me lembrem pra eu estar “presente” 100% em CADA decisão da minha Vida.
E que quando eu esquecer o quanto a minha presença no mundo é importante, que alguém delicadamente presente me faça lembrar.
Quero presente em forma de respeito, em cada olhar, em cada espaço, em cada movimento que embora não entenda minha sede de espaço, apenas respeite meu direito de fazer-me presente nele.
Respeito presente por todas as mulheres que tiveram sua trajetória nesse mundo, por todas que, se fazendo presentes, foram mortas, condenadas, ameaçadas, desqualificadas, subjugadas e ainda assim se fizeram protagonistas para que muitas de nós estivéssemos aqui, hoje, presentes.
E hoje tomo meu legado como presente, e com a força e delicadeza, com o afeto e a garra de todas às mulheres ancestrais que se fizeram protagonistas em minha história, construo a minha Presença!
O meu protagonismo nessa minha Vida.
Se eu quero presentes?
Ah se quero, não só os quero como os mereço.

Feliz dia internacional da Mulher! 🌻

PS: Grata a @julioc.bernabe por seu olhar íntimo e profundo, nem sempre presente, mas que hoje me enxergou além e se fez presença tocando minha alma com essa máquina de escrever dos meus sonhos. ❤️